Programa Mais Médicos - Aspectos Trabalhistas: Entrevista - Sebastião Vieira Caixeta

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conheça na íntegra, a entrevista concedida ao Jornal Forense pelo procurador do Trabalho Sebastião Vieira Caixeta, responsável do MPT pela investigação do Programa Mais Médicos para o Brasil.

Como é para um procurador do Trabalho verificar uma situação trabalhista ilegal proposta pelo próprio Governo Federal? O senhor não teve a impressão de estar morando em outro país?

Logo ao tomar conhecimento do Projeto Mais Médicos para o Brasil, chamaram-me a atenção a finalidade nobre dele, de levar médicos à população desassistida, a complexidade da matéria jurídica envolvida e a provável violação de valores constitucionais trabalhistas, que acabaram por ser confirmar.

Por força da atividade no Ministério Público do Trabalho em quase quinze anos de carreira, exercendo inúmeras atividades, inclusive a de Coordenador Nacional do Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo, que, desde logo, deve ser descartado no caso do Projeto, práticas precarizantes e redutoras de direitos trabalhistas não me causam tanto espanto.


Não há uma sensação de total impunidade pelo Governo Federal em relação a este tema?

Pelas conversas que mantive com diversos técnicos e autoridades, inclusive com os Ministro da Saúde, da Educação e da Advocacia-Geral da União, não me pareceu existir essa sensação.

Acredito que o Governo mirou o objetivo de atender à saúde básica da população, mas errou nos meios, afastando, arbitrariamente, uma relação de trabalho constitucionalmente protegida e não respeitando o princípio da isonomia em relação aos médicos cubanos.


A alegação de aperfeiçoamento acadêmico aos seus olhos não tem ares de uma fraude para camuflar uma relação trabalhista? Qual seu posicionamento?

Sem dúvida! Como demonstramos na Ação Civil Pública ajuizada no dia 27/03/2014, o objetivo do Projeto Mais Médicos para o Brasil é o recrutamento de mão de obra de médicos para atender as carências do Sistema Único de Saúde (SUS). Ficou muito claro, até porque confessado pelo Governo, inclusive mediante declarações da Presidenta da República, que o Projeto foi estruturado para atender à falta de médicos nas áreas consideradas prioritárias no SUS.

Desse modo, ainda que se tenha estrutura um curso de especialização, revelou-se a existência de genuína relação de trabalho. Não se trata de emprego regido pela CLT, mas de vínculo laboral lato senso protegido constitucionalmente, ao qual são imanentes direitos previstos na Carta Magna, como férias com um terço, décimo terceiro salário, licença maternidade e paternidade, entre outros.

 Nesse contexto, a invocação do curso de especialização para esconder essa relação laboral lato senso implica desvirtuamento de relação de trabalho, desvio de finalidade na aplicação do Projeto e violação dos princípios constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade.


O modo que foi realizado a contratação não afronta também a exigência de concursos públicos?

Acredito que não. O concurso público não é um fim em si mesmo. Ele é um instrumento de seleção dos melhores candidatos às vagas ofertadas. No caso do Projeto, todos os candidatos que se apresentaram para trabalhar foram efetivados, não havendo, portanto, frustração da concorrência, que sequer houve, já que todos foram aproveitados, ou ofensa ao princípio da impessoalidade, que o certame público visa a preservar.


A previsão na Medida Provisória que institui o Programa Mais Médicos, dispensando os candidatos portadores de diploma estrangeiro da validação não infringe as leis nacionais?

A meu ver não. A Constituição, no artigo 5º, inciso XIII, estabelece que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer." Pois bem, segundo a regra constitucional, cabe ao Legislador Ordinário definir as "condições de capacidade" para o exercício regular do trabalho, ofício ou profissão.

Ponderando os valores constitucionais envolvidos, foi o que ele fez, ao dispensar, para as hipóteses restritas e temporárias do Projeto Mais Médicos para o Brasil, a exigência do revalida para o registro profissional dos médicos estrangeiros, não se vislumbrando ilegitimidade dessa desigualação com a norma prevista no artigo 48, §2º, da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

É que a regra geral contida neste dispositivo pode conviver, em hipóteses específicas fundamentadas em ponderação de valores constitucionais, como outras especiais, como é o caso também do Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do Mercosul, promulgado pelo Decreto nº 5.518, de 23 de agosto de 2005.


O cumprimento do dever fundamental de garantir o direito à saúde tem força para relativizar as disposições trabalhistas? Há hierarquia de normas neste caso?

Não, sendo possível compatibilizar os vários valores constitucionais envolvidos.

Determina a Constituição da República, no artigo 196,  que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

A definição das políticas públicas aptas a concretizar esse direito fundamental cabe aos representantes legitimamente eleitos pelo povo brasileiro.

Assim, por óbvio, não cabe o Ministério Público definir quais devem ser tais políticas. Contudo, inserem-se nas funções institucionais do Parquet "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia", no exercício do seu mister constitucional de "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (CF, artigos 127 e 129, II).

Nesse contexto, é que, não obstante a finalidade nobilíssima de suprir as necessidades de atenção à saúde, pela qual o Ministério Público sempre pugnou, na Ação Civil Pública ajuizada objetiva-se garantir que o alcance desse desiderato não se dê à custa do comprometimento de outros valores constitucionais também caros à sociedade, como o respeito ao princípio da isonomia e à relação de trabalho constitucionalmente protegida.


Dentre os absurdos, o que tem chamado mais atenção é a situação dos médicos cubanos. Pode nos falar mais sobre isto?

Este é um ponto sensível do Projeto. O Governo sustenta que tais médicos são contratos no âmbito de um arranjo jurídico de direito internacional celebrado com a Opas e o Governo de Cuba, razão pela qual não poderia imiscuir-se na relação dos cubanos com estas pessoas.

Além de contraditório com o aumento anunciado pelo Governo brasileiro após a repercussão ruim dos valores pagos a esses profissionais no Brasil, o argumento não se sustenta porque a prestação se dá no Brasil e a União é a efetiva tomadora/beneficiária/dirigente/controladora dos serviços.

Nesse contexto é imperativo de soberania nacional a aplicação da legislação interna, o que é determinado também por diversos instrumentos de direito internacional ratificados pelo país.

Esses mesmos instrumentos e a Constituição da República não toleram o tratamento anti-isonômico que se vem dando aos médicos cubanos.


Como de fato é a situação da remuneração dos médicos cubanos?

Eles têm que perceber a mesma remuneração dos demais integrantes do Projeto, sejam nacionais, sejam estrangeiros, ou seja, R$ 10.000,00 previstos na Lei nº 12.871/2013 e Portaria Interministerial nº 1.369/2013 - MS/MEC.


No contrato de trabalho destes médicos com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) o senhor verificou outros abusos?

Sim. Há notícia de restrição à livre manifestação de pensamento, ao direito de ir e vir, à liberdade de contrair matrimônio ou de ter relacionamento amoroso, nos termos da nossa lei.


O senhor chegou a requerer alguma documentação a este órgão intermediário? Qual foi a resposta?

No bojo do Inquérito Civil instaurado, solicitei à Opas o envio da documentação referente ao convênio com Cuba para ter conhecimento de como era feito o pagamento a tais profissionais, uma vez que o Governo brasileiro informou que repassava o valor integral de R$ 10.000,00.

A resposta foi negativa, sob o fundamento de que a Opas tem imunidade de jurisdição absoluta e que o contrato com Cuba tem cláusula de confidencialidade.

A obscuridade quanto a tais pontos não é benéfica para ninguém, ensejando suspeitas que deveriam ser dirimidas.


Há alguma forma de cessar o programa com caráter de urgência?

O Ministério Público do Trabalho não tem intenção de fazer cessar o  Projeto. Consideramos que a política pública de levar médicos à população que não tem acesso ao atendimento de saúde é correta e necessária, mas deve ser feita com observância dos demais valores e princípios constitucionais.

Por isso, tentamos negociar com o Governo a celebração de um Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta que corrigisse as falhas do Projeto quanto aos aspectos trabalhistas.

Como a tentativa foi rechaçada, o MPT foi obrigado a entrar com a Ação Civil Pública.


Quais são os próximos passos e expectativas do Ministério Público do Trabalho sobre este caso?

Ajuizada a Ação Civil Pública, o MPT, serenamente, aguarda agora um pronunciamento do Poder Judiciário, esperando que ele acolha os pedidos de garantia dos direitos sociais trabalhistas e de isonomia entre todos os trabalhadores integrantes do Projeto, afastando a discriminação ilícita em relação aos médicos cubanos.






Procurador do Trabalho 

Sebastião Vieira Caixeta

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